À CONVERSA COM JOÃO FONSECA

05/05/2020

O projeto literário Estórias do meu país inventado é um conjunto de cinco estórias infantojuvenis.

As estórias têm a sua génese nas ilhas de Cabo Verde e nas suas realidades socioculturais.

A ilustração das estórias é da autoria dos artistas da Comunidade dos Rabelados de Espinho Branco, Rabelarte, na ilha de Santiago.

A equipa do projeto pretende fazer da contação de estórias um momento de formação e intervenção educativa, visitando escolas do ensino pré-escolar e básico nas várias ilhas de Cabo Verde.

Leia aqui a entrevista a JOÃO FONSECA.

O que lhe despertou o interesse para a escrita?

Será impossível falar do meu interesse na escrita sem falar daquilo que sou como leitor, como observador ou como pessoa. A dimensão das relações humanas e o comportamento dos homens e das mulheres, tanto individual como coletivo, é provavelmente uma das interpretações mais complexas que poderemos explorar. Por isso, talvez possa afirmar que aquilo que me desperta interesse na leitura seja uma multiplicidade de interrogações sobre a condição humana, no que diz respeito à escrita, esta, talvez seja um exercício de compreensão daquilo que sou.

  • Quais são os seus objetivos enquanto escritor?

Na generalidade a arte é um conjunto de expressões estéticas e éticas. Por isso, para mim, se essas expressões estéticas e éticas não tiverem uma relação de compromisso com a sua intervenção em sociedade tornar-se-ão insignificantes. Assim sendo, creio que o meu maior objetivo talvez esteja relacionado com a procura de uma identidade e de uma linguagem estética que seja capaz de expressar o meu compromisso com a vida e a dignidade da condição humana.

  • Por quê escrever para os mais novos?

Escrever para os mais novos está relacionado com a descoberta da paternidade. Inquieta-me a preocupação de não saber se sou capaz de dar aos meus filhos aquilo que sou e não aquilo que tenho. Por isso, estes livros são indiscutivelmente um pedaço de mim. Não sei explicar, mas quero-me dar em palavras e não em objetos. Creio que esta é a principal razão que me faz escrever para crianças.

  • Como nasceu o projeto "Estórias do meu país inventado"?

Numa primeira fase, Estórias do Meu País Inventado nasce de um conflito com a minha condição profissional e humana. Na altura, em 2017, com 28 anos, licenciado em história e aprendiz de várias profissões em situação de desemprego, cabia à minha companheira a exclusividade e a responsabilidade de assegurar a situação económica da nossa família. Talvez tenha sido esta condição emocional a razão que me levou a escrever a primeira história, As Tartarugas Também Choram. Emocionalmente sentia a necessidade de comemorar o primeiro aniversário do meu filho mais velho através da escrita, e esta, talvez tenha sido a minha forma de dar aquilo que eu era, e o que tinha, de maneira totalmente genuína.

Numa segunda fase, ainda em 2017, para tentar combater o desemprego, conceptualizei o Projeto Estórias do Meu País Inventado e ilustrei As Tartarugas Também Choram, com o intuito de formalizar uma candidatura à bolsa de criação literária da DGLAB em Portugal.

Na altura, como não consegui obter a bolsa, acabei por ficar com o texto e as ilustrações. Sem saber o que fazer às ilustrações, fiz novas tentativas nos setores da cultura em Cabo Verde. No entanto, apesar do desinteresse reiterado pelo MCIC, senti-me incapaz de parar, até que, em dezembro de 2017, a Editora Livraria Pedro Cardoso aceitou publicar o livro "As Tartarugas Também Choram" (à estampa em dezembro de 2018).

Durante o ano de 2018, enquanto aguardava a publicação do livro, escrevi Burro Carga-d'água e estruturei toda a intervenção social que desejava iniciar com o Projeto Estórias do Meu País Inventado.

Livre das malhas do desemprego, com a publicação do Livro As Tartarugas Também Choram, dei início a um conjunto de atividades de forma totalmente independente. Em 2019 organizei mais de 35 sessões de contação de histórias para mais de 3500 crianças (com o contributo de Valdir Brito); numa parceria do Projeto Estórias do Meu País Inventado com o Projeto Xalabas, os ilustradores dos livros, Fico e Sabino, elaborarem a maior pintura mural dos Rabelarte alguma vez realizada; além disso, para fechar o ano de 2019, foi à estampa, com a chancela da Livraria Pedro Cardoso, o livro "Burro Carga-d'água".

Ironia do destino, no momento do lançamento do livro Burro Carga-d'água, soube que era 1 dos 12 selecionados à bolsa de criação literária da DGLAB, com a tarefa de escrever as últimas três histórias do Projeto Estórias do Meu País Inventado. Assim sendo, respondendo à questão de como nasceu o Projeto Estórias do Meu País Inventado, talvez possa afirmar que este projeto é resultado de muito amor, muita luta, mas mais do que tudo, representa uma convicção muito firme de que na arte e na literatura são necessários um compromisso e uma determinação maior do qualquer interesse individual.

  • Como tem sido a recetividade ao projeto?

Falar da recetividade do projeto é um tema que pode provocar alguma controvérsia. Creio que somos amados por uns e desprezados por outros. Dos que nos desprezam e maltratam não falarei aqui. Desde que o Projeto saltou para o espaço publico sempre se pautou por um discurso de respeito, nível e dignidade. Não dando eco a questões secundárias, creio que o nosso compromisso em fazer e a determinação no trabalho desenvolvido, tem ajudado a conquistar o apreço e o carinho de muitas pessoas.

  • Que atividades tem desenvolvido no âmbito deste projeto e qual o impacto que têm tido?

Apesar de já ter dado conta de algumas das atividades realizadas em 2019, creio que seria importante destacar que este ano, 2020, começámos a levar o Projeto Estórias do Meu País Inventado para fora da ilha de Santiago. Realizámos a "Missão Boa Vista", onde percorremos todas as escolas da ilha numa parceria com o "Projeto Tartaruga Boa Vista", além disso, ainda este ano, coordenado com o vosso convite, iremos realizar a "Missão S. Vicente". No verão estamos a planear uma serie de apresentações em Portugal. Por isso, estatisticamente não temos como medir o impacto das ações que realizamos, mas pessoalmente, o que sinto é que a dinâmica do Projeto reflete o meu pulsar na vida.

  • Que mensagem pretende transmitir ao escolher como ilustradores jovens da comunidade dos rabelados?

Escolher os ilustradores da Comunidade dos Rabelados de Espinho Branco, Rabelarte, foi uma forma de afirmar um dos vários compromissos do Projeto. Dar voz, rosto e dignidade aos que por vezes estão numa situação de maior fragilidade, além disso, os livros do Projeto são uma forma de preservar a memória e um legado artístico (totalmente abandonado) ímpar na arte e na cultura em Cabo Verde.

Trabalhar com estes artistas fez-nos receber uma grande dose de amor, no entanto, seria injusto não referenciar que o preconceito e a descriminação está ao virar de qualquer esquina.

  • Dos contactos que tem tido com os jovens leitores, como avalia o interesse dos mais novos pela leitura?

É impossível avaliar o interesse dos mais novos pela leitura sem analisar as políticas publicas que existem à volta do livro e da leitura. Das várias idas às escolas e do contacto que tive como milhares de crianças nas várias ilhas de Cabo Verde, é urgente, sem dúvida, efetivar uma política que promova o acesso ao livro e à leitura.

É preciso compreender e assumir que a maior parte das crianças, tal como os seus agregados familiares, não tem acesso ao livro. É escusado negar que o livro em Cabo Verde é um objeto de luxo e que não é acessível à maioria das famílias. Talvez seja por isto que a maior parte das crianças tem desejo e necessidade de contactar, apalpar e conviver com os livros. Exemplo disso é o comportamento exemplar de todas as crianças que têm assistido às sessões de contação de histórias do Projeto Estórias do Meu País Inventado. As crianças em Cabo Verde amam os livros, mas a sua maioria, infelizmente, não os tem.

Apesar de tudo, é de louvar a edição dos clássicos pela Biblioteca Nacional, contudo é extremamente insuficiente. Se queremos que o livro, a leitura e a literatura saiam para lá dos meandros das elites e da classe média, não se pode olhar para os livros e para a leitura sem ao mesmo tempo pensar nos problemas estruturais da sociedade e das famílias cabo-verdianas. Caso contrário, festivais literários e políticas afins só servem para alimentar a vaidade de alguns e a promoção de outros.

Sem me querer alongar, creio que não me cabe a mim fundamentar uma crítica sobre as políticas do livro e da leitura. Para mim, o que quero é continuar a assumir o meu compromisso de ir às escolas e de promover a arte e a leitura, independentemente dos apoios ou dos reconhecimentos. O importante é fazer porque para mal dizer já há que baste.

  • Tem novos projetos em preparação?

Neste momento de pandemia e de confinamento social tenho aproveitado para trabalhar na conceção de um novo projeto literário destinado ao publico infantojuvenil. É um projeto que estou a construir há alguns meses, onde vou tentar explorar a interpretação de alguns dos grandes pensadores do sec. XX. É um projeto que tenta compreender os modelos de desenvolvimento da sociedade ocidental, em particular, da revolução industrial até ao presente, através do estudo de autores como Guy Debord, Michel Foucault, Byung-Chul Han, Slavoj Žižek, entre outros. Sobre projetos futuros diria que o tempo é sem dúvida alguma um projeto em permanente construção.

  • Que oportunidades e/ou dificuldades enfrenta um escritor no contexto editorial e cultural cabo-verdiano?

Parece-me que a cultura, e o contexto editorial em particular, são um sector onde a afirmação é sempre extremamente difícil. Isto em qualquer país, por isso Cabo Verde não é exceção.

As dificuldades e os custos associados à produção e à distribuição são muito elevados. Em Cabo Verde, tendo em conta as condições geográficas do país, estes custos são ainda maiores. Além destas condicionantes, o mercado é pequeno e existem muitas limitações. No entanto, ao nível da literatura e da edição, é notável o trabalho de várias editoras e agentes independentes, que estão a colocar o livro e a leitura num novo plano no que diz respeito ao consumo cultural.

Por fim, no que diz respeito a oportunidades, no país e na cultura, há espaço para fazer coisas novas e diferentes. Creio que com dedicação e persistência é possível inovar, por isso, não tenho dúvidas que quem procure a arte e a cultura pelo compromisso, e não pelos holofotes mediáticos, tem em Cabo Verde uma oportunidade.

Biografia:

João Fonseca nasceu e cresceu numa pequena aldeia do Baixo Mondego, perto da Figueira da Foz, Portugal. Licenciou-se em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.Em 2016, já no interior da ilha de Santiago, Tarrafal, iniciou a sua aventura no mundo da literatura infantojuvenil e escreveu as primeiras páginas do projeto literário «Estórias do Meu País Inventado».Em 2018, publicou As Tartarugas Também Choram.Em 2019, publicou Burro Carga-d'água, a segunda história das cincos que integram este projeto. Atualmente é beneficiário da bolsa de criação literária da DGLAB.

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